Pilar do progressivo moderno dava um enorme passo no terreno das obras conceituais
Por Luiz Athayde
Neste exato dia, na classe de 1999, o Dream Theater surpreendia mais uma vez não somente pelo conjunto da obra, mas por editar um disco quando o mercado americano não se mostrava mais favorável às bandas da esfera metálica.
Só que, de alguma maneira, o progressivo sempre deu seu jeito de sobreviver às ondas sônicas, justamente por saber a hora de colocar peso, abusar das características intricadas e não ter medo de apelar para o pop quando necessário; vide Marillion, Threshold, Riverside. Para citar alguns exemplos aleatórios.
No caso do grupo composto pelos membros fundadores John Petrucci, Mike Portnoy e John Myung, mais Jame LaBrie e o então novato Jordan Rudess, essa suposta regra foi quebrada ao trazer um álbum inteiramente conceitual, uma espécie de super spin-off de “Metropolis – Part I The Miracle And The Sleeper”, faixa presente no clássico Images and Words, de 1992.
Além de ser uma das músicas mais aclamadas da discografia dos americanos, sua segunda parte era mais do que esperada. E quase veio no quarto álbum deles, Falling Into Infinity (1997), na época contando com o tecladista Derek Sherinian. Mas a gravadora tratou de recusá-la quando recebeu a demo do disco.
A faixa continha cerca de 20 minutos de duração, o que automaticamente os obrigariam a lançá-la no formato duplo; e a última coisa que o mercado queria era composições grandes.
O tempo passou, e claro, muita coisa aconteceu: desde o registro anterior tendo uma receptividade aquém do esperado – ainda hoje ‘Falling…’ é objeto de divisão no gosto dos fãs – à ruptura com Sherinian. Além do excelente entrosamento entre Petrucci/Portnoy e o tecladista Jordan Rudess no projeto paralelo Liquid Tension Experiment.
A consequência natural foi trazer a segunda parte de Metropolis à vida. Desta vez, como um álbum: Metropolis Pt. 2: Scenes From A Memory. “Estávamos saindo de um período muito difícil para a banda, e aquele álbum era tipo “faça ou morra”, disse Portnoy em uma entrevista de 2009 concedida para o site Live Metal. “Sentimos que tínhamos muito a provar e, se não provássemos, seria o fim”, revelou.
E põe difícil nisso. Imagine a banda sem sua espinha dorsal. Foi o que aconteceu, embora olhando hoje, tudo não tenha passado de um breve susto. “Durante a turnê de Falling Into Infinity, eu decidi deixar a banda – e o fiz por uns dias”, disse John Petrucci à revista Prog (via Press Reader).
Cortesia do péssimo relacionamento com a gravadora da banda, Elektra, e o alcoolismo de Mike Portnoy, que àquela altura se encontrava fora de controle, a ponto dele demitir o técnico de guitarra de Petrucci após um acidente no palco, fazendo com que os dois ficassem sem se falar por quase um mês.
Por outro lado, ao comentar sobre o novo tecladista, Portnoy diz aliviado (via Live Metal): “Jordan estar na banda deu um novo sopro de vida à banda.”
O projeto foi registrado nos meses de junho e julho de 1999, nos estúdios Bear Tracks, Bear Studios, Avatar, Electric Lady e Sterling Sound, todos em Nova York; e no Metal Works Studios em Toronto, Canadá.
Este também marca a estreia de Mike Portnoy e John Petrucci na produção – algo que seria uma constante nos lançamentos subsequentes –, embora tenham contado com Terry Brown (Rush), George Marino (Stevie Wonder, The Psychedelic Furs, Type O Negative) e Kevin Shirley (Journey, Silverchair, Iron Maiden) para overdubs adicionais, mixagem e masterização respectivamente.
Ainda que o cerne criativo tenha sido o baterista e o guitarrista, em Metropolis Pt. 2: Scenes From A Memory houveram contribuições de todos, inclusive nas letras, com LaBrie e Myung assinando uma cada.
Já Rudess, mesmo empolgadíssimo para fazer sua parte, encaixou o que foi possível: “Quando eu entrei no estúdio para gravar com eles, eu tinha 60 ideias gravadas. Eu estava tão inspirado, tipo: ‘Oh, meu Deus! Vou me juntar ao Dream Theater e vai ser incrível!’ E tal”, contou o tecladista em entrevista para o canal Ibagens Cast, poucos dias antes da apresentação do Dream Theater no Rock in Rio 2022.
E surpreendeu ao revelar: “Eu gravei tudo, cheguei no estúdio com todas essas ideias e disse para Portnoy: ‘Mike, cara, eu tenho todas essas ideias’ E ele disse: ‘Não, não, não, nós escrevemos o material juntos no estúdio’ Ele estava se sentindo um pouco intimidado pelo fato de eu estar vindo com todas essas ideias.”
Na inspirção sônica admitida por Petrucci e Portnoy para compor o disco, uma enxurrada de clássicos como Tommy e Quadrophenia, do The Who; Misplaced Childhoold e Brave, do Marillion; The Lamb Lies Down On Broadway, do Genesis; The Dark Side Of The Moon e The Wall (este último se mostrando bem latente na sonoridade), do Pink Floyd.
E mais: The Pros and Cons of Hitch Hiking, de Roger Waters; o correligionário Operation: Mindcrime, assinado pelo Queensrÿche, e o revolucionário OK Computer, do Radiohead, do qual o baterista sempre foi fã assumido.
A HISTÓRIA
O álbum é dividido em 12 faixas, 9 “cenas” e 2 atos. Seu personagem principal é Nicholas, um homem problemático, atormentado por constantes imagens que circundam seus sonhos. Na procura por respostas, ele recorre a ajuda de um hipnoterapeuta, que o submete a sessões de regressão.
O procedimento o leva de volta para 1928, e descobre que lá ele viveu como uma jovem chamada Victoria Page. Não obstante, Nicholas lança mão de reportagens de jornais e memórias extraídas de seu próprio subconsciente, que o conduzem até a casa de um idoso, que lhe diz (em “Fatal Tragedy”): “Você sabia que uma garota foi assassinada aqui? Esta tragédia foi comentada por anos.”
Ao passar por outra sessão de regressão, Nicholas vê o noticiário sobre a morte de Victoria, supostamente se tratando de um crime passional: Julian Baynes (The Sleeper) comete suicídio após matar Page. Em um momento de reflexão após mais essa revelação, Nicholas visita o túmulo de Victoria e enxerga a vida de uma nova maneira.
No segundo ato, Julian Baynes está inconformado com o fim de seu relacionamento com Victoria, causado por seu vício em drogas. Quem aparece em cena é seu irmão, o senador Edward Baynes (The Miracle). Ele se vê apaixonado por Page quando ela lhe confidencia o rompimento com Julian. Mesmo com um forte sentimento de culpa, Edward a seduz.
O ato sexual é ouvido na música “Home”, antes da banda embarcar em uma viagem instrumental de aproximadamente 5 minutos, e logo em seguida, emendar com “The Dance of Eternity”. A busca de Nicholas por respostas o faz ir novamente à cena do crime. Por um instante, ele visualiza o local como Nicholas e Victoria.
Um dos momentos mais emocionantes do disco surgem na música “The Spirit Carries On”. É quando Nicholas perde o medo da morte, ao compreender que a mesma se trata apenas uma passagem. “Se eu morrer amanhã, eu estarei bem, porque sei que o espírito segue em frente”, diz a letra.
Musicalmente, Jordan Rudess dá as caras mais intensamente, já que ele assina os arranjos e a condução do fantástico coral formado por Theresa Thomason, Mary Canty, Shelia Slappy, Mary Smith, Jeanette Smith, Clarence Burke Jr., Carol Cyrus e Dale Scott.
A trama caminha para seu encerramento com “Finally Free”, trazendo os eventos sob o prisma de Edward. Revoltado por Victoria e Julian terem reatado, ele prepara um encontro para matá-los. Para despistar a polícia, Edward coloca um bilhete suicida no bolso de Julian após atirar nos dois.
Ao sair de mais uma sessão com o hipnoterapeuta, Nicholas deixa o consultório e dirige até sua casa – a essa altura, sem o álbum como trilha sonora –, liga a TV e prepara uma bebida. Pouco tempo depois de sentar e conferir as notícias, surge a voz do hipnoterapeuta que diz: “Abra seus olhos, Nicholas”, seguido de um grito.
O final incógnito é desenhado no DVD Metropolis 2000: Scenes From New York, onde em paralelo à performance da banda, há um ator (Kent Broadhurst) no palco no papel do hipnoterapeuta – inclusive tendo James LaBrie no divã como se fosse Nicholas, apenas na introdução – e outros no vídeo exibido no telão durante o show, contando a história na medida que as músicas avançam.
O assassino é revelado
No vídeo, o encontro marcado por Edward (interpretado por Michael Bentholm) é retratado com Julian (Kasper V. Kristensen) e Victoria (Siri Vilboel) se beijando em um local sombrio, próximo a um casarão.
Edward então aparece repentinamente e os irmãos entram em luta corporal. Logo em seguida, Julian puxa uma faca e é imediatamente surpreendido com uma arma em sua mira. Edward efetua dois disparos. Antes de matar Victoria, ele diz a frase-chave: “Abra seus olhos”. E some no meio da escuridão.
Já na cena final, Nicholas (Sune L. Jensen) assiste ao noticiário sentando em uma cadeira de balanço. Depois de desligar a TV, ele se serve de um copo de whisky enquanto ouve uma marcha fúnebre no seu toca-discos. Quem aparece a passos largos e fortes é o hipnoterapeuta (Kent Broadhurst), ou seja, a reencarnação de Edward Baynes, o ‘The Miracle’, para matá-lo, que diz: “Abra seus olhos, Nicholas”, selando o destino de ambos mais uma vez.
Metropolis Pt. 2: Scenes From A Memory foi um álbum marcado pela sua grandiosidade como projeto, e extrema dedicação para sua conclusão. Mas seu número mais expressivo foi um modesto 73º lugar na Billboard americana. Ainda assim, sua maior importância foi manter o grupo nos trilhos.
No âmbito dos licenciamentos, “Scenes… ” foi lançado mundialmente pela, apesar da tempestade, Elektra Records, com o Brasil ganhando duas prensagens em CD: uma em 1999 e outra no ano 2010. A distribuição é da Warner Music Brasil Ltda.
Resenha foda! Super completa. E que álbum!!